No Cariri cearense, os casos de intolerância religiosa se multiplicam. Na região que ficou conhecida como a “terra do Padre Cícero”, os praticantes de religiões de matriz africana (candomblé e umbanda) relatam diversos episódios de preconceito e discriminação. Em entrevista à Agência Cariri, Gabriel França, filho de santo do terreiro Ilé Asé Omo Ayê, localizado no Crato, afirma ter passado por situações constrangedoras desde que começou a professar sua religião: “nossa cultura foi estuprada; foi tirado à força o nosso direito de cultuar nossos deuses, de falar nossa língua, de falar sobre nossos orixás”.

O filho de santo lembra da primeira vez em que percebeu que estava sendo vítima de intolerância religiosa: “Na universidade usava branco todos os dias. As pessoas pensavam que eu estava cultuando Nossa Senhora de Fátima. Certa vez, uma professora perguntou o motivo e eu disse que era por conta da minha religião. Ela pediu para eu me retirar da aula, uma vez que minha presença incomodava”. O caso aconteceu em uma universidade privada em Juazeiro do Norte. “Eu nunca tinha sofrido, até então, intolerância religiosa, e quando não acontece com você, você não sabe o peso”, comenta Gabriel, que encontrou no terreiro o apoio que precisava. Além do suporte espiritual, o local também presta serviços sociais, alguns em conjunto com a Igreja São Francisco, no Crato, doando cestas básicas para a comunidade.

 

A Constituição de 1988 garante a consagração de todos os tipos de cultos, sem qualquer forma de censura ou discriminação. No entanto, apesar do que determina a lei, o crime de intolerância religiosa ainda é muito cometido no Brasil. Dados do Relatório sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, produzido pela Unesco, apontam que o número de casos em terras brasileiras dobrou no período de três anos, saltando de 477 denúncias em 2019 para 966 em 2021, sendo as religiões de matriz africana as mais atingidas. Segundo informações divulgadas pelo Disque 100, canal para denúncias de intolerância religiosa, o Brasil registra uma média de três casos por dia.

A intolerância religiosa se manifesta de diversas formas, sendo elas ofender, rechaçar ou discriminar o culto ou crença religiosa do outro e os praticantes de religiões de matriz africana são as maiores vítimas de acordo com o Ministério dos Direitos Humanos. Segundo a pasta, somente em 2022 foram 1.200 ataques, um aumento de 45% em relação a 2020. 

A Lei 14.532/23, sancionada em janeiro deste ano pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, equipara o crime de injúria racial ao de racismo, além de proteger a liberdade religiosa. O crime pode render de dois a cinco anos de prisão, além de multa. Caso seja cometido por mais de uma pessoa, a pena pode ser dobrada. Os crimes de intolerância religiosa podem ser denunciados em qualquer delegacia. 

Apesar de ser considerado crime, no Cariri muitos casos seguem impunes, como a situação em que o vereador cratense Marquinhos do Povão atacou os povos de terreiros através de áudios vazados do whatsapp, em 2022. O caso ganhou muita repercussão na mídia local, mas o crime permanece impune e até hoje Marquinhos permanece na função de vereador. 

O dia 21 de Janeiro é um dos dias mais importantes para a luta a favor do respeito e da tolerância entre os cultos religiosos. Além do Dia Mundial da Religião, a data também representa o Dia Nacional do Combate à Intolerância Religiosa, em território brasileiro, Instituído pela Lei 11.635, de 2007, sancionada pelo, na época, presidente Luiz Inácio Lula da Silva, em homenagem a Gildásia do Santos, candomblecista, moradora e nascida em Salvador (BA), que sofreu diversos ataques por professar a sua crença.

Intolerância religiosa e Transfobia ganham delegacia no Ceará

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Em fevereiro deste ano, o Governo do Ceará inaugurou a primeira Delegacia Contra Crimes de Intolerância Racial, religiosa e de orientação sexual (DECRIM) do Estado. A medida, segundo o governo estadual, visa reprimir os casos e prestar atendimento mais humanizado às vítimas. 

Para acesso à delegacia, o endereço é a Rua Valdetário Mota, 970, no bairro Papicu, em Fortaleza. No entanto, não há necessidade de ir à essa delegacia para denunciar qualquer crime de intolerância religiosa ou sexual. Atualmente qualquer delegacia está orientada a receber a denúncia, além de haver a possibilidade de denunciar virtualmente, através da Delegacia Eletrônica do Ceará.

Para os umbandistas e candomblecistas que vivem no interior do Estado, a ausência de uma delegacia especializada dificulta o acesso e as denúncias de intolerância religiosa. Gabriel França, do terreiro Ilé Asé Omo Ayê, afirma que, mesmo havendo algumas adoções de leis por parte do governo para proteger os povos de terreiro, “não existe política pública que proteja, de fato, esses povos no Cariri”. Como exemplo, ele cita a vez em que procurou a DECRIM, em Fortaleza, para formalizar uma denúncia. “Fomos fazer o Boletim de Ocorrência, mas não nos atenderam e nos informaram que o que passamos não era crime”. E ele complementa ainda sobre a preparação dos gestores de segurança do estado: “a própria equipe da política do estado do Ceará não quer fazer o boletim como crime de intolerância religiosa, como LGBTfobia ou racismo”. Segundo o filho de santo, o preconceito e a intolerância também partem daqueles que, supostamente, deveriam defendê-los.

Exu, o injustiçado: conheça a verdade por trás dessa entidade

“Exu te ama”. A frase, estampada em uma das paredes da área externa do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, em Fortaleza, tem sido alvo de ataques. A deputada estadual Dra. Silvana (PL) entrou com requerimento  solicitando a retirada do letreiro, que chama atenção para a exposição “Festa, Baia, Gira, Cura”, lançada dia 30 de setembro pelo Museu da Cultura Cearense (MCC), por considerá-lo uma afronta aos valores cristãos. Em nota, o centro cultural classificou os argumentos da parlamentar como “preconceituosos e intolerantes”.

Os Exus são divindades que geram muito debate teológico. Normalmente, são equivocadamente associados a figuras diabólicas e rituais satânicos. Mas a verdade está muito longe disso. Para compreender os Exus, é preciso saber que há dois deles: o Orixá e o Guardião. O Orixá Exu é um ser divino, como Iemanjá. Sua energia e força são igualáveis a um Deus, porque é isso que ele é, segundo a crença do Candomblé. O Exu Guardião – também conhecido como Catiço  – é o que faz a proteção do seu filho no mundo espiritual e material, uma vez que têm a permissão para transitar nesse plano. 

A função dos Exus é, acima de tudo, proteção. O Orixá Exu faz a ponte entre os mundos espiritual e material. Quando o pai de santo joga os búzios, por exemplo, as informações dadas são encaminhadas pelo Exu Orixá aos médiuns, diretamente do divino. Já o Guardião, assim como o nome, tem a função de proteger seus filhos diretamente. São eles que conseguem incorporar no médium, em uma gira, por exemplo, renovando a energia do terreiro e de quem estiver presente.

Apesar de haver vários Exus, as características são marcantes e raramente variam. No geral, o Exu é uma entidade justa e disciplinada. Alguns são até brincalhões e gostam de fazer piada. Mas também são protetores com seus filhos e sérios quando precisam ser. A ligação entre o Exu Guardião e seus filhos datam do nascimento, segundo o filho de santo Pablo Bezerra: “o Guardião é designado na nossa vida assim que a gente nasce. Nós chegamos a esse plano com ele, assim como a pombagira (outra entidade cuja função também é proteção).

“Laroyê, Exu” é a frase usada para saudar um Exu na Umbanda e no Candomblé, e significa ‘Salve, mensageiro’. Apesar de a Umbanda e o Candomblé terem a mesma origem, possuem também muitas diferenças. Por isso é importante ter em mente que algumas entidades ou Orixás podem apresentar distinção, assim como os terreiros pertencentes à mesma religião. Dois terreiros candomblecistas, por exemplo, podem apresentar formas distintas de cultuar a religião. 

Larissa Costa  / Agência Cariri