No mês de aniversário da Lei Maria da Penha, o Ceará não tem motivos para comemorar. Dados divulgados pela Secretaria da Segurança Pública e Defesa Social (SSPDS/CE) apontam que, somente nos sete primeiros meses deste ano, 28 mulheres foram vítimas de feminicídio no Estado. O número é praticamente o mesmo de todo o ano passado, quando foram registrados 29 casos. Ainda segundo a SSPDS/CE, entre janeiro de 2018 e julho de 2023, a região do Cariri responde pelo maior número de mortes, com 28 dos 179 casos de feminicídio confirmados no período.  

Um dos últimos casos de feminicídio no Ceará ocorreu no dia  6 de agosto, na capital do Estado, Fortaleza. Francisca Laura Souza da Silva foi morta dentro de casa durante a madrugada. O principal suspeito do crime é o seu marido, policial militar. Na região do Cariri, Maria Tereza Xavier Maia, de 35 anos, mãe de três filhos, foi morta a facadas dentro de casa pelo ex-marido, em Missão Velha. O crime aconteceu em 25 de abril deste ano. O suspeito, preso em flagrante, confessou o crime à polícia, mas alegou que agiu em legítima defesa. 

O feminicídio com maior repercussão no Estado foi o da presidente da Câmara de Vereadores de Juazeiro do Norte, Yanny Brena, que foi assassinada pelo ex-namorado, no dia 3 de março, na sua residência. De acordo com relatório do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, em 73,7% dos crimes cometidos contra mulheres, o autor do crime é conhecido da vítima. Os dados também constatam que a residência é o local de maior vulnerabilidade das mulheres à violência. 

O crescimento do número de casos de assassinatos de mulheres tem preocupado especialistas, que acreditam que os índices são ainda maiores que aqueles divulgados oficialmente. Segundo a Rede de Observatórios da Segurança, os órgãos de segurança podem não reconhecer os crimes de homicídios contra a mulher corretamente, por se tratar de uma tipificação sujeita a interpretação. “Vítimas dos diferentes tipos de feminicídios são negligenciadas e muitas vezes os crimes não recebem a tipificação correta. O que cria a sensação de que se trata de um problema menor do que realmente é”, destaca o relatório.

A Lei do Feminicídio (Lei 13.104/2015), que entrou em vigor na Legislação Penal brasileira em 2015, prevê três hipóteses para tipificação deste crime de homicídio: quando é decorrente de violência doméstica e familiar em razão da condição de sexo feminino, razão de menosprezo à condição feminina, e em razão de discriminação à condição feminina. “Nem todo o homicídio de uma mulher é necessariamente um feminicídio, é necessário analisar os elementos que identificam que o homicídio realmente é um feminicídio”, explica a pesquisadora Éster Coelho, em artigo publicado na revista da Escola Superior da Magistratura do Estado de Santa Catarina.

Em agosto, a Lei Maria da Penha completou 17 anos de combate à violência contra a mulher, sendo assim, o principal instrumento jurídico do Brasil para ajudar as mulheres em situações de violência. A lei de número 11.340/06, atua de forma protetiva e define como crime a violência doméstica e familiar contra a mulher, penalizando “qualquer ação ou omissão baseada no gênero que lhe cause morte, lesão, sofrimento físico, sexual ou psicológico e dano moral ou patrimonial”.

Saiba como denunciar casos de violência contra a mulher no Cariri

Crédito: Honório Barbosa

Uma ferramenta desenvolvida e gerenciada pela Polícia Civil do Ceará, lançada este mês, permite que as mulheres vítimas de violência familiar e doméstica que vivem na região do Cariri possam solicitar medidas protetivas de urgência online. O serviço garante às mulheres acesso rápido aos pedidos de medidas protetivas contra o agressor sem a necessidade de comparecer presencialmente a uma delegacia. Para denunciar, as vítimas podem acessar o site no seguinte endereço: mulher.policiacivil.ce.gov.br.

Além do novo canal de atendimento às vítimas, as mulheres do Cariri também podem denunciar violência doméstica e descumprimento de medidas protetivas à Patrulha Maria da Penha, de Juazeiro do Norte, pelo telefone (88) 93300-1414. No Crato, a Delegacia da Mulher atende pelo telefone (88) 3102-1250 ou presencialmente das 8h às 18h. Outros canais possíveis de atendimento são a Defensoria Pública através do telefone (88) 3587-1642, no horário das 8h às 14h e o Centro de Referência da Mulher em Crato pelo número (88) 99780-4166 ou presencialmente, das 8h às 17h.

A psicóloga Macedônia Félix, da Casa da Mulher Cearense do Cariri, reforça que, para prevenir ações e lidar com ameaças, as mulheres devem recorrer à polícia, registrar um boletim de ocorrência, encerrar o relacionamento, encontrar um lugar seguro e uma rede de apoio. É importante estar próxima das pessoas que fazem parte dessa rede, simultaneamente ao procedimento jurídico necessário. O ideal é que as mulheres não permitam que a relação chegue a esse ponto de ameaça. Quando se trata de ameaças, ela chama a atenção das mulheres que estão passando por essa situação. “Nas primeiras manifestações de ciúme, palavras ou comportamento controlador na relação, a mulher deve terminar esse relacionamento”, recomenda. 

A psicóloga ressalta que, quanto mais tempo a mulher permanece em um relacionamento abusivo, mais difícil é retomar sua vida normal antes das violências sofridas, “pois essas relações adoecem, afetando emocionalmente nossa capacidade de trabalhar, planejar e viver”. Ela considera que o crime da violência, seja ela física, moral, sexual, patrimonial ou psicológica, deixa mais do que marcas físicas, atingindo a própria dignidade da mulher, como ser humano e cidadã. 

Em todo o país, o Disque 180 funciona como uma central de atendimento à mulher. O 180 “Lei Maria da Penha” presta atendimento imediato, escuta e acolhida qualificada às mulheres em situação de violência. O serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgão competentes, bem como reclamações, sugestões ou elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. Em casos de urgência, as mulheres também podem recorrer ao 190, que é o número da Polícia Militar.

Casa da Mulher Cearense: experiência do Cariri é referência 

Crédito: Isabella Oliveira

Inaugurada há pouco mais de um ano, a Casa da Mulher Cearense do Cariri, localizada em Juazeiro do Norte, foi reconhecida pelo governo federal como uma referência em rede de proteção e atendimento humanizado às mulheres em situação de violência. Em visita à instituição, no último dia 22, a ministra da Secretaria Especial da Mulher, Cida Gonçalves, anunciou que irá implementar modelos semelhantes em todos os estados brasileiros. A unidade do Cariri presta serviços a mulheres dos 29 municípios da região e já realizou mais de 15 mil atendimentos desde que começou a funcionar em março do ano passado.

A Casa da Mulher Cearense no Cariri é um espaço com Delegacia de Defesa da Mulher, Tribunal de Justiça, atendimento psicossocial, Ministério Público, Defensoria Pública, que oferece atendimento especializado e integrado para lidar com diversas situações e ajudar as mulheres a romper o ciclo de violência. Além dos órgãos de atendimento, a unidade oferece cursos de formação profissional de apoio à autonomia econômica, alternativas de abrigo temporário e área infantil para crianças que acompanham as mães. Segundo o titular do Juizado da Mulher de Juazeiro do Norte, Juiz José Acelino Jácome, “o equipamento com os órgãos centralizados na Casa da Mulher é fundamental e  de grande importância porque visa diminuir os passos da mulher em busca de proteção e justiça”.  

Em entrevista à Agência Cariri, a psicóloga da Casa da mulher Cearense do Cariri, Macedônia Félix afirma que, “quando não existia a Casa da Mulher, as vítimas ficavam escondidas nas casas do movimento feminista da região. Era um grande risco para as mulheres em situação de violência e para as que davam abrigo. A casa integra os serviços da rede, garantindo o atendimento psicológico, jurídico e policial necessário para que a mulher tenha segurança para sair da violência”, declara a psicóloga. 

A Casa da Mulher Cearense de Juazeiro do Norte foi nomeada em homenagem à cearense Arlete de Souza Negrão, que foi vítima de feminicídio aos 64 anos. Arlete deixou seis filhos, que vivem hoje na região do Cariri. O crime aconteceu em fevereiro de 2012, no Recife, quando a idosa tentou proteger a irmã de um vizinho. Herbert Lucas Abreu Mendes invadiu o apartamento de Arlete e a agrediu com socos e chutes, levando-a à morte.

Klébia Souza e Isabella Oliveira / Agência Cariri